Por Fábio Marton
Em 1984, uma indústria química na cidade de Bhopal, Índia, liberou 30 toneladas de isocianato de metila no ar. O composto causa queimaduras químicas nos olhos, pele e tecidos internos do pulmão. Em 24 horas, até 25 mil pessoas morreriam. A maioria delas moradoras de uma favela próxima. Foi o pior desastre industrial da história.
É esse tipo de história que muitas pessoas têm em mente quando ouvem falar em química. Química é perigosa. Química é ruim para você. Química é o contrário de natural.
Mais do que qualquer coisa, química é o que as pessoas não entendem. E, como diz o velho mas verdadeiro clichê, temem.
A verdade, porém, é que química é apenas a ciência que estuda a composição da matéria e suas interações. Tanto faz se sintético ou natural. Tudo é químico: sua pele, seus ossos, o tomate na salada do almoço. Por exemplo, dê uma olhada na cianidina 3-glucóside, ou isoquercetina:
Podemos apresentar ela como um flavonoide, um tipo de polifenol, compostos de hidroxilas ligadas a anéis aromáticos. O que traz à mente a figura Dona Leonor, professora de química do Segundo Grau, com sua inquebrantável expressão de tartaruga de Galápagos, julgando a humanidade por trás de suas lentes bifocais.
Mas podemos dar outra descrição: cor de morango. Responsável pelo vermelho, a isoquercetina é uma das dezenas de compostos químicos que constituem a fruta, que incluem também nomes como metil-EA pentose ou quercetina glicosídeo. Se você lesse isso num rótulo de uma embalagem de morangos frescos, como se sentiria?
Alguém pode dizer: “tá bom, o que você fez foi só apresentar um composto natural com seu nome técnico. Mas não muda o fato que veio da natureza. Portanto é inofensivo”. Falemos então de algo perigoso, a alfa solanina.
Esse é um potente neurotóxico que pode levar a alucinações, pesadelos, paralisia e, eventualmente, morte. E está naquela cestinha de vime em cima da mesa da cozinha. A solanina é o veneno da batata. Ela existe na planta inteira, menos a raiz – exceto se você expô-la ao sol: a batata então fica verde, o que indica que está carregada de solanina. E pode, em tese, matar você. Exatamente como a natureza planejou.
Plantas como a batata evoluíram venenos para evitar que fossem comidas. E, de fato, quase todas as plantas são, para um bicho ou outro, venenosas. Nós apenas descobrimos as que não são para nós. Ou as condições em que não são: a mandioca possui nada menos do que cianetos, a mesma classe do famoso veneno com que líderes nazistas decidiram acabar consigo mesmos antes de serem julgados. Isso a torna letal para quase tudo, mas o cozimento nos livra do mesmo destino de Hitler e Eva Braun. Coisa que nenhum outro animal, contra quem a mandioca evoluiu essa defesa, é capaz de fazer.
O cianeto nas cápsulas dos nazistas vinha de uma fábrica. Na mandioca, é produzido naturalmente. Não faz a menor diferença. Você morre do mesmo jeito. Moléculas são moléculas, veneno é veneno, o que não mata, engorda – como o álcool, que é um produto saído de uma indústria química, envelhecido por reações químicas nos barris. Porque é uma tradição de séculos, ninguém pensa em um uísque como algo “sintético”. Mas é.
Não existe nenhum atributo misterioso indicando que moléculas sejam naturais ou artificiais. E venenos naturais, nascidos de uma longa evolução contra herbívoros e onívoros, estão, de fato, em número maior do que os artificiais.
Então, relaxe e pare de caluniar a química. Se a natureza ainda não conseguiu matar você, provavelmente não será um produto testado por décadas em estudo após estudo. Esse é um luxo que nossos ancestrais não tinham. Era tentativa e erro. Mártires desconhecidos pagaram com a vida para descobrirmos quais compostos químicos iam para o prato, quais serviam melhor nas flechas destinadas aos inimigos.
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